A Endodontia é a especialidade que trata ou previne as patologias pulpares e as periodontites apicais. O tratamento endodôntico tem como principais objetivos limpar e desinfetar toda a extensão do sistema de canais radiculares a um nível compatível com saúde (Siqueira et al 2000). Quando, através de um meticuloso tratamento, alcança-se tais objetivos, as taxas de sucessos podem ultrapassar os 94% (Imura et al. 2007; Lazarski et al. 2001). Na busca por estes resultados, durante a terapia endodôntica, realiza-se o preparo mecânico através de instrumentos endodônticos e o preparo químico através de soluções irrigadoras.
Após a limpeza e a modelagem, a obturação endodôntica deve preencher tridimensionalmente e selar o espaço endodôntico visando prevenir a recontaminação bacteriana, mantendo as condições de sanificação alcançadas através das etapas anteriores.
O preparo mecânico do sistema de canais radiculares é de extrema importância no processo de sanitização endodôntica (Al-Sudani D, Al-Shahrani 2006). É responsável por remover fisicamente a dentina contaminada e consequentemente as bactérias localizadas dentro dos túbulos dentinários. Além disso, amplia o diâmetro e modela os canais principais propiciando a chegada de maior volume de soluções irrigadoras até o terço apical (Shuping et al 1999, Siqueira et al 2000). Ele também cria uma forma cônica favorável para a obturação endodôntica. Portanto, influencia diretamente na qualidade do processo de desinfecção e consequentemente no prognóstico do caso.
Erros de procedimentos na fase de preparo mecânico podem impossibilitar o alcance de níveis de desinfecção necessários. Yousuf W et al. 2015, fizeram a avaliação radiográfica digital de 1748 dentes tratados endodônticamente e encontraram erros de procedimentos em 32.8% (574 dentes) dos dentes avaliados. O transporte do forame apical, levando ou não à perfuração da raiz, esta entre os erros mais comumente cometidos durante o tratamento endodôntico especialmente em canais curvos (Fogarty TJ & Montgomery S 1991; Camara AC et al. 2007; Gergi et al 2010).
De acordo com o Glossário de Termos Endodônticos da Associação Americana de Endodontia, o transporte do canal é definido como: "Remoção de estrutura dentinária da parte externa da curvatura na metade apical do canal em função da tendência das limas em restaurar sua forma reta original durante o preparo do canal; pode criar desde um degrau até levar a perfuração da raiz."
O uso intempestivo de limas endodônticas rígidas como as de aço inox, especialmente de maiores calibres, sem estudo prévio da anatomia dental interna a ser trabalhada, aumenta o risco de transposição foraminal.
A limpeza inadequada dos canais, especialmente do terço apical, predispõe o insucesso endodôntico (Sjogren et al 1990; Nair PN et al 1990). O transporte do forame pode não apenas prejudicar a desinfecção do sistema de canais por impossibilitar o acesso à trajetória original do mesmo, como irritar o periápice pela extrusão de bactérias e seus subprodutos e inviabilizar o ajuste apical ideal de um cone de guta percha. Estas deficiências técnicas impostas pelo erro operacional na fase de preparo podem influenciar negativamente o selamento apical e o adequado controle bacteriano (Wu M et al 2002). Como consequência, pioram o prognóstico do caso clínico envolvido.
Segundo Gluskin et al 2008, o transporte do forame pode ser classificado em três categorias:
Tipo I - representa um deslocamento mínimo da posição fisiológia do forame.
Tipo II - representa um movimento moderado da posição fisiológica do forame resultando em um severo deslocamento para a superficie externa da raiz. Neste tipo, uma comunicação maior com o periápice é iatrogênicamente criada.
Tipo III - representa um severo deslocamento da posição fisiológica do forame e do canal resultando em uma significante iatrogênia.
O tratamento de casos com transportes apicais pode ser feito por diferentes abordagens clínicas. Canais com transposição do Tipo I podem ser normalmente limpos e obturados; com Tipo II, podem ser obturados após a aplicação de uma barreira apical para controlar o sangramento e servir como anteparo físico para evitar a extrusão do material obturador endodôntico. Nestas situações também pode ser considerada a colocação de um tampão apical com MTA seguido de obturação endodôntica convencional.
Todavia, em casos clínicos com transporte apical do Tipo III, geralmente não é possível alcançar limpeza, desinfecção e obturação adequados. Desta forma, estas etapas devem ser realizadas da melhor forma possível seguidas de uma microcirugia apical para remoção da região apical não tratada.
Paciente do gênero feminio, 55 anos de idade, ASA I, compareceu ao consultório queixando-se de dor espontânea, constante, exacerbada durante a mastigação e palpação apical na região dos dentes 13 e 11 que vinham sendo tratados endodônticamente nos últimos 3 meses. A pressão arterial aferida foi de 128X78 mmHg, frequência cardíaca 82 bpm, saturaçao de oxigênio de 98% e temperatura corpórea de 38,5 0C.
A paciente relatou que não sentia dor antes do início dos primeiros tratamentos endodônticos e que estes foram indicados por motivos reabilitadores. Após a primeira sessão endodôntica onde os dentes 13 e 11 foram tratados ao mesmo tempo, a dor começou e exarcebou após o terceiro dia. No quarto dia a paciente necessitou receber Dipirona e Cetoprofeno Intravenosos para controle da dor. Adjuntamente à medicação sistêmica foi realizado um ajuste oclusal. Após 2 dias a dor retornou e a paciente procurou outro dentista que lhe administrou Dipirona Sódica 500mg/ml a cada 04 horas e Nimesulida 100mg a cada 12 horas por via oral durante 7 dias. A dor diminui porém não cessou. Novamente após 2 dias do término do uso das medicações sistêmicas a paciente voltou a sentir dor. Ela procurou então um terceiro profissional que iniciou a reintervenção endodôntica dos dentes 11 e 13. Entretanto a terapia que estava sendo realizada não estava sendo capaz de controlar efetivamente a dor. Depois de 4 dias a paciente também começou a apresentar quadros febris. Foi relatado que em nenhum dos procedimentos endodônticos realizados foi utilizado isolamento absoluto.
O exame clínico revelou acessos endodônticos nos dentes 13 e 11. A configuração geométrica inadequada dos acessos endodônticos já sugeria problemas nas etapas de preparo químico-mecânico do sistemas de canais radiculares (FIGURA 1, FIGURA 2). Radiograficamente observou-se terapia endodôntica iniciada nos dentes 13 e 11 com transporte de forame Tipo III. No dente 12, observou-se coroa total, retentor intrarradicular metálico e tratamento endodôntico insatisfatório (FIGURA 3). Na tomografia foi possível evidenciar as transposições foraminais dos dois dentes (FIGURA 4, FIGURA 5)
Devido a gravidade do desvio apical nos dentes 13 e 11, o tratamento indicado foi a reintervenção endodôntica com complementação microcirúrgica apical. O tratamento do dente 12 também se fazia necessário através de limpeza, modelagem e desinfecção do sistema de canais com consequente obturação endodôntica. Entretanto, como a coroa protética deste elemento encontrava-se adaptada e uma microcirurgia já era prevista para os dentes vizinhos, optou-se por realizar o retro-retratamento endodôntico.
O tratamento foi iniciado com a reintervenção endodôntica do dente 11 seguida do dente 13. Os canais foram irrigados com Hipoclorito de Sódio a 2.5% seguido de EDTA 17%, ambos com PUI e preparados com Reciproc 50 (VDW- Munich- Alemanha). Através do microscópio operatório e da radiografia periapical foi possível visualizar o desvio apical do dente 11 entretanto não foi possível retomar a trajetória original (FIGURA 6, FIGURA 7). O mesmo ocorreu com o dente 13. Devido à grande irregularidade das paredes dos canais após a transposição do forame, não foi possível realizar o travamento adequado de um cone de guta-percha. Por este motivo optou-se por realizar um tampão apical de 4 mm com MTA-HP (Angelus, Londrina, Brazil) (FIGURA 8). A obturação do restante dos canais foi realizada utilizando guta-percha termoplastificada com cimento Fillapex MTA. O cimento Fillapex MTA contém partículas de MTA em sua composição.
Após o termino desta etapa, a paciente foi submetida à microcirurgia apical onde removeu-se com ultrassom piezoelétrico e ponta W1-CVDentus a área apical correspondente à região da iatrogenia apical. No dente 12 foi realizada a piezo-apicectomia com os mesmos instrumentos e o canal foi retropreparado até a profundidade correspondente ao ápice do núcleo metálico fundido presente. Após secar o canal com um suctor cirúrgico (Endo Tips 0.014"- Angelus - Londrina - Brazil) acoplado a uma bomba a vácuo, procedeu-se com a retro-obturação utilizando-se MTA-HP (Angelus - Londrina - Brazil) (FIGURA 9, FIGURA 10, FIGURA 11).
O MTA tem sido o material de escolha para o selamento de perfurações, retropreparos e de ápices com morfologia irregular, não circular decorrente de reabsorções radiculares ou preparos apicais errôneos. Suas características superiores de adaptação marginal, biocompatibilidade, capacidade seladora em ambientes úmidos, indução e condução de formação de tecido duro, cementogênese com consequente formação de adesão periodontal normal, fazem dele o material mais apropriado para estas situações clínicas. O MTA-HP também é apresentado na forma pó e líquido. Ele preserva todas as características do MTA tradicional acrescentando maior facilidade de manuseio clínico. Esta melhor propriedade de manipulação clínica é devida a uma mudança no tamanho das partículas do pó do MTA e da adição de um plastificante ao líquido.
Após 5 meses da microcirurgia a paciente retornou para controle clínico radiográfico. Clinicamente não apresentava mais nenhuma queixa de dor ou desconforto. Radiograficamente observa-se o rápido reparo do periápice nos três dente envovildos (FIGURA 12).
A fase de preparo químico mecânico do sistema de canais radiculares é de extrema importância para o sucesso da terapia endodôntica. Erros operacionais nesta fase, incluindo o transporte foraminal, podem comprometer drasticamente o prognóstico do caso. Por este motivo é de extrema importância preveni-los.
Entretanto, dependendo da gravidade do erro, ele pode ser reparado. O controle radiográfico e clínico pós-operatório deste caso clínico evidenciam que a complementação microcirúrgica pode ser uma opção clínica segura e previsível.
Prof. Dr. Leandro A. P. Pereira
Professor de Endodontia da Faculdade de Odontologia São Leopoldo Mandic Mestre e Doutor em Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica Medicamentosa UNICAMP Especialista em Endodontia - Microscopia Operatória - Sedação Inalatória
N. Imura, E. T. Pinheiro, B. P. F. A. Gomes, A. A. Zaia, C. C. R. Ferraz, and F. J. Souza-Filho. The outcome of endodontic treatment: a retrospective study of 2000 cases performed by a specialist. Journal of Endodontics, vol. 33, no. 11, pp. 1278–1282, 2007.
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